AS PINTURAS DE TEC: ENTRE O CÉU E A TERRA


Por Miguel Chaia – Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (NEAMP).


A exposição “Tango” – presencial e virtual – apresentada no ateliê de Tec e organizada pela Galeria Choque Cultural reforça a dimensão da pintura no conjunto da sua obra, à medida que os trabalhos reafirmam a potência pictórica obtida através de recursos próprios desta linguagem. E, esta exposição também deixa entrever como suas pinturas foram feitas tendo por base tanto a continuidade quanto rupturas, que vem ocorrendo ao longo da trajetória do artista.

Embora a força das pinturas advenha dos jogos de pinceladas, das relações de formas e cores, bem como da luminosidade e transparências, elas foram afetadas pelas múltiplas práticas do artista. Pode-se perceber em muitas pinturas de Tec aspectos que se originam na intervenção urbana, na fotografia, no vídeo e no uso técnico do drone como recurso de obtenção de imagens. Esta multidisciplinaridade estética imprime nova dimensão às pinturas atuais de Tec – de imediato dá ao artista maior liberdade de experimentação, incentiva a correr riscos e encontrar na pintura o fim em si mesma. Ao se deixar sensibilizar pelos seus outros fazeres artísticos, Tec obtém novas formatações pictóricas. Obviamente, considerando a escala da sua trajetória, o artista repete um momento da história da arte moderna quando a fotografia liberou a pintura das amarras de copiar a realidade, libertando a pintura para novas aventuras.

Assim, o pensamento que rege as atuais pinturas de Tec retoma conceitos de trabalhos anteriores, norteia-se por experiências recentes e o leva a novas proposições para repor a representação pictórica – suas pinturas de cavalete e suas pinturas urbanas são retomadas sob outro recorte. Ainda com os vestígios da profusão de cores e formas relativas ao ser humano e ao ambiente urbano, organizadas por relações lógicas dadas pelo tema, as atuais pinturas ganham forte articulação do espaço dadas pelo próprio ato de pintar – o tema é a pintura em si. As pinturas, por traz das formas, linhas e cores, mantém indícios da paisagem ou da realidade circundante. Neste sentido, o apreço pela representação se encontra com os gestos, grafismos quase dadaístas e letras/palavras ressignificadas – encontro este que imprime caráter específico à pintura de Tec.

Tomando como referências para a análise, as pinturas ‘Brexit Al Sur’, ‘Duas Terras’ e ‘Pomba Jira’, todas de 2020, nota-se que Tec continua a ocupar o espaço com múltiplos fragmentos, inúmeros acontecimentos, justaposições de formas, grafismos, palavras e vestígios do corpo humano – contando ainda com o acaso deixado pelo pincel. Entretanto, nestas três pinturas a tela passa a ser ocupada por uma área central bem delimitada que concentra os acontecimentos e signos pictóricos. Ou em dois grandes blocos, como em ‘Duas Terras’. Nestas pinturas, ao invés de ocupar totalmente a superfície da tela como uma cortina, Tec abre espaços em torno do bloco destacado na superfície do trabalho.  As amplas áreas, aparentemente vazias, amarram a composição. Isso ocorre, à medida que Tec desloca o enquadramento dado às suas telas, passando da perspectiva frontal (janela), aquela que se obtém na altura dos olhos,  para a perspectiva aérea, do alto para baixo, aquela dada pelo olhar do pássaro em voo (a chamada ‘visão de Deus’), em algumas das atuais telas. Neste sentido, cabe lembrar que estão presentes na mostra algumas pinturas pequenas com revoadas de pássaros brancos, entrelaçados com as nuvens, no vasto céu azul, como ‘Debandada’ e ‘Visto do Alto’ – ambas de 2020.Esta última pintura é um indício do grau de consciência do artista em assumir uma visão do alto, manifesto no título da tela e também nas imagens nela contida com uma posição central de uma nuvem, rodeada de largos e seguros gestos das pinceladas.

As atuais pinturas possuem, assim, uma monumentalidade alcançada também devido às intervenções nos amplos e extensos espaços urbanos realizadas por Tec e à criação de vídeos e fotografias registrados por câmeras de drones. Elas ganham um significado especial por dar a ver as férteis consequências estéticas das ações que realimentam os diferentes meios de expressão disponíveis ao artista. Assim, especificamente, neste momento, se dá a perceber como a pintura de Tec é afetada por múltiplas linguagens e suportes. Esta mostra, “Tango”, resulta de um artista multidisciplinar que se utiliza da  liberdade experimental própria da esfera da arte.

A tela ‘Brexit Al Sur’ traz a representação de uma imensa forma tentacular, posta no centro da tela e que remete aos traçados de uma ilha. Este pedaço de terra delimitado por linhas, manchas de corres está cercada de amplos azuis e contém traços, gestos expressionistas nervosos – e a letra A (de Argentina?). Há nesta tela a memória das Ilhas Malvinas, dividida, fracionada, em conflito, num mar calmo e luminoso. Uma pintura de representação de um mapa livremente esboçado: poder da arte em criar um mundo próprio. Há um esforço de linguagem agora de buscar uma luminosidade clara, transparente, aquela que é difundida do céu para a terra.

‘Duas Terras’ exacerba a perspectiva aérea, por conter faixas magnificas de formas e cores como se fossem duas faixas, na parte inferior e superior da tela. Nela a dimensão planetária é representada numa pintura parcimoniosa, com cores sóbrias. Novamente a luminosidade acende a partir da faixa azul intermediária, da luz solar, em contraste com os tons baixos e escuros das duas faixas superior e inferior da tela.

‘Pomba Jira’, vincula uma ideia inicial, de uma pomba encontrada nas ruas do bairro, com um corpo celeste. Mantendo uma representação gráfica mínima de um pássaro, em vermelho, Tec acopla a ela um volume orgânico, cósmico, que tende tanto a ser um corpo animal quanto uma cartografia celeste. E, novamente, a luminosidade estoura entre brancos e zuis que ocupam os arredores da forma central, também clara e transparente.

Estas três pinturas de grandes tamanhos, cerca de 2000 cm por 1500 cm, podem até merecer considerações exteriores referentes aos seus vínculos de representação, mas a força que as atravessa nasce das especificidades da própria pintura. O tema é mero pretexto para Tec exercitar a pintura em si mesma. Talvez, o método de trabalho de Tec seja a observação de um dado da realidade circundante para ir, num movimento de espiral, justapondo formas e cores, num constante recomeço: a pintura como um (re) fazer constante.

A luz que se esparrama pelas pinturas nasce da amplitude dos planos e da luminosidade das cores selecionadas que ocupam áreas generosas como também estabelecem relações que irradiam brilho para compor abstrações líricas e/ou figurações sugeridas.

Neste sentido, a claridade da luz solar aparece como uma opção decorrente da forma como o artista  desenvolve a ideia original, uma vez que a noite e o dia, ou seja diferentes luminosidades já estão à disposição de Tec. Veja-se a pintura “Night And Day’, 2020, que divide a tela, ao meio, horizontalmente, trazendo na sua composição um cenário noturno acima e um diurno a baixo. Na babel urbana convulsiva, com helicópteros, copos de cerveja, faces humanas e parte de animais, além da palavra ‘sexo’ e letras.  Densos signos pictóricos convivem na simultaneidade do dia e da noite. O primeiro na representação do azul claro e a segunda no preto escuro. E, em muitas destas pinturas atuais da mostra “Tango” (aliás, título de uma pequena tela presente na exposição, enigmática composição e pista da presença da memória do artista), Tec faz a opção pela claridade do dia, busca levar às telas aquela luz que é captada pelos voos dos drones, imersos nas transparências de azuis e brancos do alto da terra. O contraste claro-escuro dá lugar agora a uma luminosidade matinal, que mesmo brilhante, não ofusca o olhar.

Há em Tec  um desejo intenso pela representação, contido tanto pela tendência à fragmentação quanto pela busca de uma totalidade inapreensível. A convivência de contrários e de diferentes é um aspecto estrutural das pinturas de Tec (assim como a simultaneidade do dia e da noite: ou do vídeo e da pintura). “Tango” é uma exposição que, além da dramática condição de exposição virtual devido a um estado de exceção, expressa um momento privilegiado do fazer artístico, pontuado por movimentos que partem de uma produção já sólida, com repertórios conquistados, em direção à criação de um caleidoscópio de formas, cores, espaços e enquadramentos/composições, produção organicamente ligada ao conjunto de experiências e práticas advindas de outros suportes e linguagens. Trata-se de uma situação na qual a pintura é colocada entre.

E agora, nestas pinturas recentes, nestas aproximações entre opostos complementares, convivem céu e terra, os macrocosmos e o micro e o continente e a ilha. E, também, convivem o pincel e drone; o atelier e a cidade;...


Miguel Chaia, junho de 2020.